sábado, 27 de junho de 2009

Educação - Rubem Alves

COMPAIXÃO
Minha neta Camila tem onze anos. Ela estava almoçando quando, de repente, sem razão aparente, começou a chorar. Saiu da mesa e foi para a sala de televisão, onde se deitou num sofá e continuou a chorar. Fui até ela para saber o que estava acontecendo e foi isso que ela me disse: “Vovô, eu não consigo ver uma pessoa sofrendo sem sofrer. Quando vejo uma pessoa sofrendo, o meu coração fica junto ao coração dela...”
Tão menina e já sofre de poesia. Ela pensa usando imagens: o meu coração fica junto ao coração dela...
Isso tem o nome de compaixão. Talvez devêssemos abandonar a definição tradicional do ser humano como o animal que pensa e substituí-la por uma nova, tão mais verdadeira: o homem é o animal que sente compaixão. Compaixão quer dizer “sentir junto”. Eu não estou sofrendo. Mas vejo alguém sofrendo. Duas crianças, numa noite de garoa, num semáforo, me pedem um trocado. Elas me olham com seus olhos pingando de chuva. O seu olhar rompe a minha tranquilidade. E eu sofro com elas.
Compaixão também se tem por um animal. Consta que Nietzsche, vendo um carroceiro a chicotear um cavalo, abraçou-se ao cavalo e ficou louco, definitivamente. Um mundo onde homens chicoteiam animais é um hospício de loucos. Lembro-me de uma amiga chorando com o seu pássaro preto nas mãos, morrendo. Afinal de contas, quanto vale um pássaro preto? E pode até mesmo ser compaixão por uma planta. Fernando Pessoa sentia compaixão pelos arbustos: “Aquele arbusto fenece, e vai com ele parte da minha vida. Em tudo quanto olhei fiquei em parte. Com tudo quanto vi, se passa, passo. Nem distingue a memória do que vi do que fui.” Os olhos, movidos pela compaixão, colocam o coração junto ao coração do ser que está sofrendo.
A Ética é uma disciplina filosófica que se dedica a investigar o bem que devemos fazer. Um dos seus grandes teóricos foi Kant. Mas Kant se assombrou com o fato de que os homens, inteligentes, capazes de conhecer com a sua razão o bem que deve ser feito, não o fazem. O conhecimento da Ética não nos torna seres éticos. Um professor que ensina Ética numa sala de aulas pode ser um monstro quando ninguém está vendo.
Os políticos que mergulharam o Brasil nessa vergonha não são ignorantes. São seres inteligentes. Estudaram em boas escolas. Têm diplomas. Sabem o que é certo e o que é errado. E até mesmo se gabam de sua excelência em público, sem se envergonhar. Bom é pouco. Muito bom não chega. Excelentíssimo, bom acima de qualquer comparação: é assim que eles se tratam.
A corrupção não decorre da falta de conhecimento. Decorre de uma doença na alma. Não aprenderam a compaixão. Não se enquadram, portanto, em nossa definição de homem. Seus corações não sofrem ao ver o sofrimento. Veem as crianças nas ruas, os velhos abandonados, os adolescentes confusos, os pobres com fome. Mas isso não faz os seus corações sofrerem. Não são capazes de repetir o que disse o poeta: “Em tudo quanto olhei fiquei em parte.” Os corações sem compaixão batem sozinhos. Não saem de si mesmos.
Aí comecei a pensar nas escolas. Tantas coisas se ensinam lá! Os programas são enormes. Mas onde se ensina compaixão? Como se ensina compaixão? O lugar da compaixão não é o lugar do conhecimento. É o coração. É do coração que a Ética surge, como determinação viva do corpo. Mas como se educa o coração? Conhecimento sem coração é demoníaco. As maiores atrocidades são perpetradas por meio dos conhecimentos de Ph.Ds.
Se alguma escola estiver interessada em ensinar a compaixão, chamem a minha neta Camila. Ela sabe...

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